Segundo bispo de Caxias do Sul, atuante entre 1952 e 1983, Dom Benedito Zorzi (1908-1988) foi um forte entusiasta da educação e do conhecimento como agentes transformadores da sociedade. Tanto que teve papel fundamental, por meio da Mitra Diocesana, na criação das faculdades de Ciências Econômicas e de Filosofia - embriões da Universidade de Caxias do Sul, juntamente com a Escola de Bela Artes, a Escola de Enfermagem Madre Justina Inês e a Faculdade de Direito.
Dom Benedito também costuma ser lembrado pela postura mais avançada em relação à maioria dos religiosos locais - em especial por não compactuar com os militares na época do Golpe de 1964 e por trabalhar junto aos movimentos missionários e de catequização, surgidos como uma espécie de resposta à repressão do período.
– Ele protegia muito os padres mais avançados, batendo boca nos quartéis, não era aliado à cúpula conservadora. Por isso o povo conservador de Caxias nunca gostou muito do Dom Benedito – recordou o padre Roque Grazziotin (1946-2019), ex-integrante dos movimentos Juventude Universitária Católica e Juventude Operária Católica, em reportagem publicada pelo Pioneiro em 1º de abril de 2014, por ocasião dos 50 anos do Golpe Militar.
Um exemplo desse engajamento deu-se em 1975, quando Zorzi remeteu à imprensa local o texto do Boletim das Quartas do Serviço de Documentação e Divulgação da Diocese de Caxias do Sul (SDD). O recado era claro: Dom Benedito Zorzi manifesta-se sobre expulsão de bispo e sobre campanha de desmoralização que vem sendo feita contra sacerdotes, religiosos e bispos no Brasil.
O bispo em questão era Dom Pedro Casaldáliga, um dos maiores defensores dos direitos humanos e dos povos do campo e símbolo da luta contra a ditadura - falecido em agosto último, aos 92 anos.
O texto original
Confira acima e abaixo o texto original publicado pelo Jornal de Caxias há 45 anos, em 27 de setembro de 1975.
Em carta circular enviada a todos os sacerdotes e religiosos, bem como a todos os fiéis da diocese de Caxias do Sul, o bispo diocesano, Dom Benedito Zorzi, acaba de se pronunciar sobre o que denomina de uma "campanha de desmoralização que, desde algum tempo, vem sendo feita contra sacerdotes, religiosos e bispos, no Brasil". Refere-se também a uma ameaça de expulsão do país do bispo de São Félix do Araguaia (MT), Dom Pedro Casaldáliga, ameaça que seria conseqüência dessa campanha. Diz o bispo diocesano:
"Tem esta circular a finalidade de dar conhecimento a todos a respeito de uma campanha de desmoralização que, desde algum tempo, vem sendo feita contra sacerdotes, religiosos e bispos, inclusive contra o próprio Secretário Geral da CNBB, Dom Ivo Lorscheiter, contra o Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Ams, e contra Dom Pedro Casaldáliga que, segundo se lê em "O Estado de São Paulo" de 18 de setembro último, estaria ameaçado de expulsão do país.
No Rio Grande do Sul, esta mesma campanha atingiu freiras, capuchinhos e padres diocesanos, mesmo da Diocese de Caxias do Sul, inclusive seu bispo.
Usa-se o rádio, a televisão, a imprensa; interrompem-se programas de televisão muito apreciados pela grande massa de povo para, diabolicamente, intercalar-se a desmoralização. Isso lembra o que fazia o Nazismo, na Alemanha, nesta mesma linha”.
Em seguida, o bispo diocesano se pergunta pelo porquê do interesse de desmoralizar pessoas da Igreja e lembra todo o trabalho de sacerdotes, religiosos e bispos na pregação do Evangelho, na pregação da justiça e da paz entre os homens. E continua Dom Benedito:
"Uma das grandes misérias de que é testemunha o sacerdote missionário é a luta inglória pela posse da terra. Que aconteceu neste particular e o que ainda continua a acontecer? Nós, daqui do Sul, onde cada família que vinha da Europa recebia um lote rural, pagando-o a longo prazo, não fazemos idéia exata sobre o que tem acontecido e ainda continua acontecendo neste imenso país, um continente, e no qual, por incrível que pareça, a maioria do povo não encontra um pedaço de terra onde possa se estabelecer pacificamente".
Lembra também o bispo a ganância dos grandes proprietários de terras no Paraná, Mato Grosso, Goiás e outros estados, que enxotam à força e, muitas vezes com mortes, milhares de pessoas que têm direitos sobre a terra que ocupam, afirmando:
"Existem leis que defendem o homem que têm posse pacífica da terra. Existem leis de uma Reforma Agrária. Existe o Estatuto da Terra. Mas, e a sua fiel execução? Existem pessoas que passam por cima da honestidade, da justiça e do amor, com vontade de possuir o Brasil inteiro. É preciso alertar, neste ponto, nossos irmãos que vivem entre nós e que procuram terras em outras partes: que não cometam injustiças, que respeitem os direitos de pessoas que lá se encontram, sejam quem forem: pobres, caboclos, índios... Que é que nós bispos e padres fazemos? Que é que pregamos? Precisamente isso: que os homens se ajudem, se respeitem, se queiram bem como irmãos. Exatamente porque fazemos essa pregação, os que se sentem atingidos lançam mão da arma da desmoralização".
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