Eu nunca vivi uma guerra, mas sempre enxerguei e me relacionei com os ingredientes como se tivesse vivido. Para mim, qualquer parte do ingrediente tem um valor enorme. Uma sementinha de quiabo carimbou meu nome na gastronomia mundial. Eu viajei o mundo inteiro e falei sobre a cozinha brasileira por causa dela, que depois ficou cientificamente conhecida como: caviar vegetal. Olho o mundo sempre com esse olhar, ele me ajuda a viver a minha vida de cozinheira com mais conexão com a natureza e, consequentemente, com o planeta. Posso dizer com uma alegria quase infantil que o desperdício no meu trabalho, mesmo antes de toda essa calamidade, é quase zero. Hoje, diante de tudo o que estamos vivendo, seguir esse raciocínio não é uma opção, é mandatório. Olhar os ingredientes e as pessoas com mais humanidade, com mais calma, pensando mais no que vai fazer, no que vai dizer, em como vai agir.
Vamos fazer um exercício juntos? Pense numa abóbora. Agora, enumere na sua mente tudo que você imagina que pode ser feito com as partes dela. Aposto que você lembrou da semente, mas se esqueceu da casca! Com a casca, você faz um caldo incrível! Lave e higienize bem. Coloque num tabuleiro, regue com azeite, um pouquinho de manteiga – se não tiver, improvise e use a criatividade –, leve ao forno por alguns minutos e deixe caramelizar ligeiramente. Retire do forno, coloque numa panela com um pouco mais de azeite, uma cenoura e uma cebola – de produtores familiares artesanais, por favor! Vamos pensar não só na cadeia produtiva, mas na afetiva também. Refogue em fogo baixo para soltar o açúcar dos legumes e caramelizar o caldo. Cubra com água fria filtrada e deixe cozinhar por uma hora. Tampe e deixe descansar, essa é a parte mais importante. E se você parar para pensar, isso diz muito sobre absolutamente tudo. Está na hora de parar, de repensar, de refletir. Mas também está na hora de agir! Levante logo daí e cozinhe aquele capeletti que você tem na geladeira nesse caldo de casca de abóbora, sente, e coma bem quentinho! A vida fará muito mais sentido depois.Tudo vai passar, mas você nunca mais vai olhar uma abóbora do mesmo jeito...
*Roberta Sudbrack é cozinheira e colunista do Destemperados