A prática da psicanálise é muito parecida com escrever. Toda vez que um paciente cruza a porta do consultório uma sensação de angústia percorre o corpo. O paciente vem em busca de cura para sua dor psíquica. O psicanalista o acolhe sem saber se poderá ajudar a cicatrizar suas feridas tão abertas. Não falemos em cura, porque curar(se) é de uma ordem tão profunda e abstrata, às vezes tão idealizada, que merece um texto somente para ela. Clarice Lispector diz em seu texto intitulado “submissão ao processo” que o escrever é feito de erros – a maioria essenciais, assim como receber os pacientes. Para escrever um texto é preciso que um acordo afetivo seja estabelecido. Escrever é mexer nas feridas, é dar forma aos sentimentos, contorno aos versos. É um reajeitar as vírgulas, abrir nossos parágrafos, reduzir uma frase muito longa, enxertar citações. É preciso que se tenha em mente que uma boa história é sempre atravessada por muitas outras histórias e nem sempre elas estão explícitas. Com o paciente algo parecido se processa. Precisamos estar com e jamais apesar de. Toda vez que um paciente se deita no divã (mesmo que seja um divã metafísico por causa da pandemia e dos atendimentos online) lembro de Manoel de Barros, pois ali inicia sua desbiografia. Conta-me do quanto já foi musgo, húmus, passarinho de asa quebrada, talo de gerânio machucado, minhoca na calçada, uma poça de sol no jardim, criança ferida, adulto solitário, noites de insônia, dores no corpo, pensamentos repetitivos, sensação de morte, medo. Conta-me também dos desejos, sonhos, gostos diferentes, fantasias, curiosidade crianceira. Suas fábulas particulares e assim, recria o real no irreal.
Opinião
Adriana Antunes: narrar-se
É preciso vivenciar o dito, outra vez e mais outra e outra vez ainda e quantas vezes forem necessárias até que possamos compreender o gatilho de nossas ações