Por gerações a família de Paban Baroi foi guardiã de um templo de adoração a Shiva, o deus hindu da destruição, até que o poderoso rio Padma avançou sobre o santuário causando estragos também em sua casa, além de outras 200 residências nos arredores da capital de Bangladesh.
O homem de 70 anos e seus vizinho estão entre milhares de bengalis que ficaram desalojados este ano por enchentes e deslizamentos de terra que redesenharam as paisagens - um fenômeno que piora com a mudança climática.
Em um dia de setembro, o rio subitamente mudou seu curso e atingiu a comunidade de Bangla Bazar, encharcando os terrenos que deslizaram e cobriram todo o vilarejo. "A corrente era muito forte", disse Baroi à AFP. "Muitos de nós, passamos a dormir a céu aberto".
O templo ficava nos arredores de Dhaka, local do festival anual que reúne fieis hindu na região de maioria muçulmana. As cerimônias foram realizadas mesmo durante as piores catástrofes do país, incluindo a violência sectária que acompanhou o fim da era colonial britânica e a brutal guerra de independência de 1971, que viu um êxodo de hindus perseguidos para a vizinha Índia.
Mas as festividades do próximo ano podem ser canceladas pela primeira vez em mais de um século, já que muitos dos participantes habituais terão sido forçados a se mudar.
"Costumava ser uma comunidade próspera de carpinteiros, pescadores, agricultores e comerciantes", disse à AFP Sohrab Hossain Pir, conselheiro da aldeia. "O rio levou tudo".
Bangladesh é um país recortado por grandes rios, como o Ganges e Brahmaputra, que correm do Himalaia e atravessam o subcontinente do sul da Ásia.
Inundações periódicas que afetam casas, mercados e escolas sempre foram uma realidade para as dezenas de milhões de agricultores e pescadores que vivem nas margens dos rios - algumas das áreas mais densamente povoadas do interior de Bangladesh.
Para os cientistas, as mudanças climáticas aumentaram a gravidade e a frequência do fenômeno, com mais chuvas irregulares, ciclones, inundações repentinas e sofrimento humano.
- 'Claramente resultados da mudança climática' -
Este ano, inundações recordes mataram mais de 100 pessoas em todo o país e afetaram outras sete milhões, mobilizando esforços de socorro por meses.
Espera-se que o impacto piore significativamente nas próximas décadas, assim como o aumento do nível do mar ameaça deslocar dezenas de milhões de pessoas ao longo da costa baixa de Bangladesh e inundar suas terras agrícolas com água salgada.
Bangladesh já é classificado pela ONU e por grupos da sociedade civil como um dos países mais afetados pelas mudanças climáticas, com cidades inteiras em seu interior varridas do mapa.
Cerca de 1.800 hectares de terra serão engolidos por rios em Bangladesh este ano e as casas de pelo menos 10.000 pessoas desaparecerão, de acordo com o Centro de Serviços de Informações Ambientais e Geográficas (CEGIS), financiado pelo Estado.
"Esses eventos de erosão são claramente resultado da mudança climática", disse Ian Fry, relator especial da ONU sobre mudança climática, durante sua visita ao país em setembro.
Moradores de vilarejos desaparecidos muitas vezes buscam uma nova vida na periferia de Dhaka, uma cidade de 22 milhões de habitantes que dobrou de tamanho desde a virada do século devido à migração urbana.
"Muitas dessas pessoas foram deslocadas por razões relacionadas às mudanças climáticas", disse Fry em um comunicado que destacou a desnutrição infantil endêmica, a falta de água potável e as altas taxas de tráfico humano.
- 'Para onde iremos?' -
Bangladesh apresentará um plano nacional para administrar os crescentes desastres naturais e calamidades na cúpula climática COP27, que será realizada em novembro no Egito. Isso inclui manter a erosão dos rios em cerca de 1.000 hectares por ano - do tamanho de um grande aeroporto internacional.
Na cúpula, Daca apelará aos líderes das nações desenvolvidas para um financiamento urgente. Estima-se que 230 bilhões sejam necessários até 2050 para mitigar todos os impactos das mudanças climáticas enfrentados pelo país.
"Está claro para mim que o fardo da mudança climática não deve ser carregado apenas por Bangladesh", disse Fry, acrescentando que nações mais ricas com níveis historicamente mais altos de emissões devem ajudar a pagar a conta.
"Por muito tempo, os países negaram sua responsabilidade pelo sofrimentos que causaram", disse ele. "Eles deveriam estar pagando por isso."
De volta a Bangla Bazar, Baroi e sua família ainda não haviam encontrado abrigo uma semana depois de perder sua casa, enquanto alguns de seus vizinhos se refugiaram em estábulos.
Aqueles que ainda têm um teto se preocupavam em descobrir seu destino quando o Padma decidir engolir mais terra. "Não quero ir a lugar nenhum", disse Baroi. "Mas se o rio devorar a aldeia inteira, o que acontecerá? Para onde iremos?"
* AFP