Os primeiros obuses caíram antes do amanhecer e destruíram os telhados de alumínio das casas precárias, obrigando os moradores de Khano Admasi a se abrigarem nas colinas semeadas de cactus.
Khano, de 60 anos e voz suave, também fugiu de sua aldeia de Bisober, no Tigré, uma região do norte da Etiópia onde o governo de Adis Abeba realiza há seis semanas uma grande operação militar para derrubar as autoridades dissidentes locais da Frente de Libertação do Povo do Tigré (TPLF).
Enquanto fugiam, Khano e Miskana, seu filho mais velho, de 46 anos, esbarraram com soldados do Exército Federal que os obrigaram a entrar em uma casa. Dentro dela havia mais duas famílias aterrorizadas.
A cena que se segue, descrita por três testemunhas oculares, mas desmentida pelo governo etíope, levanta dúvidas sobre as declarações do primeiro-ministro Abiy Ahmed, que insiste em que os civis estavam a salvo nesta operação militar.
Aparentemente, os soldados acusaram Miskana e outros dois homens de terem ajudado a TPLF, cujas tropas lutam contra o Exército federal.
"Nos perguntaram quem éramos e respondemos: 'só camponeses e mulheres velhas'", explica Khano. "Eles voltaram, ordenaram que saíssemos e separaram as mulheres dos homens".
Os soldados sentaram os homens e os mataram com vários disparos de Kalashnikov. Um menino de 15 anos também perdeu a vida enquanto tentava, em vão, proteger seu pai.
Era 14 de novembro e os sofrimentos dos civis em Bisober, povoado agrícola de 2.000 habitantes no sul do Tigré, não terminaram por aí. Durante os três dias que o Exército precisou para expulsar a TPLF da aldeia e tomar o controle, 27 civis foram mortos, segundo depoimentos de funcionários locais e de habitantes.
A região do Tigré está isolada do mundo há muitas semanas. As comunicações estão começando a se restabelecer e ainda é muito difícil ter uma primeira estimativa real do número de vítimas do conflito.
No entanto, a AFP foi recentemente autorizada a visitar o sul do Tigré, onde os habitantes de várias cidades e aldeias acusam o Exército e os combatentes da TPLF de terem colocado os civis no centro do conflito, e até de atacá-los diretamente.
O Exército não respondeu os contatos da AFP, e o ministro da Democratização, Zadig Abraha, afirmou à AFP que qualquer acusação de que os soldados etíopes tenham matado civis é "falsa".
A AFP não conseguiu contatar os líderes da TPLF.
Distante de tudo isso, Khano não consegue apagar de sua memória a visão de seu filho mais velho assassinado diante de seus olhos pelos soldados.
"Não choramos. Estávamos aterrorizados. Tremíamos de medo", conta Khano, que agora tem a responsabilidade de criar os três filhos de Miskana.
* AFP