Vinte e seis anos atrás, em uma tarde de domingo, um homem que almoçava em uma lanchonete na Austrália sacou um rifle semiautomático de sua mochila e atirou em estranhos que estavam sentados na mesa ao lado. Mas ele não parou por aí. Em questão de minutos, o atirador já havia matado 20 pessoas e ferido outras 10 – não apenas na lanchonete, mas também na loja vizinha. Enquanto fugia, ele ainda atirou em várias outras pessoas em um estacionamento e em um posto de gasolina. No total, foram 35 vítimas.
Após a tragédia, o governo da época, de centro-direita, agiu rapidamente para promulgar novas leis mais rígidas sobre posse e porte de armas – apesar da prevalência de uma cultura pró-armas na Austrália que era semelhante à que existe hoje nos EUA. “Na época, havia uma oposição intensa”, relembra John Donohue, professor de direito e economista de Stanford. “Na verdade, quando o primeiro-ministro fez o anúncio sobre as novas leis, ele precisou usar um colete à prova de balas.” Em um dos protestos, um boneco representando o vice-primeiro-ministro chegou a ser“linchado”.
De todo jeito, as mudanças nas leis foram mais longe do que qualquer tentativa que já foi feita nos Estados Unidos. O governo australiano baniu armas automáticas e semiautomáticas, criou um novo registro nacional de armas de fogo, instaurou um período obrigatório de espera de 28 dias para a compra de armas, e chegou a comprar e destruir mais de meio milhão de fuzis automáticos que os australianos já possuíam – um programa caro, financiado pelo aumento de impostos. Tudo isso aconteceu apesar da resistência em massa a qualquer controle de armas.
A mudança funcionou. Nos 18 anos anteriores ao tiroteio de 1996, a Austrália havia registrado 13 tiroteios em massa – definidos como “assassinatos em que há 5 ou mais vítimas de arma de fogo”. Desde que as leis foram aprovadas, houve somente um caso em que um avô matou membros da família e depois a si mesmo.
“A experiência australiana é realmente surpreendente”, diz Donohue. “Passei um bom tempo estudando esse assunto. Em um cálculo per capita, a Austrália tinha um problema de tiroteio em massa muito maior do que os EUA antes de 1996. Ou seja, eles passaram de um problema pior para praticamente o fim desse problema.”
Embora John Howard, o primeiro-ministro australiano em 1996, tenha enfrentado uma oposição poderosa (que pode ser semelhante, em alguns aspectos, ao que os defensores americanos do controle de armas enfrentam agora), a cultura política da Austrália também era diferente. A NRA (Associação Nacional de Rifles da América) estava apoiando grupos australianos que se opunham às leis de controle de armas, mas não havia um forte lobby de controle de armas no país. “Na Austrália não havia ninguém que tivesse um forte interesse econômico para pressionar por mais armas em todos os lugares”, explica Donohue.
“Isso fez com que ninguém conseguisse impor toda aquela retórica constantemente divulgada ao público que é tão comum nos EUA, e os interessados nas armas não conseguiram financiar pesquisas que sugerissem que as armas são boas.” Muito pelo contrário: especialistas, como pesquisadores de saúde pública, clamaram por mais controle de armas.
Embora fosse bastante comum os australianos possuírem armas quando ocorreu o massacre de 1996, o país também não possui o equivalente à Segunda Emenda. Nos Estados Unidos, essa emenda constitucional afirma que “uma milícia bem regulamentada é necessária à segurança de um Estado livre” e que “o direito do povo de manter e portar armas, não deve ser infringido — algo que, em outro contexto, os fundadores do país achavam necessário para poder combater um exército permanente. Mas em 2008, a Suprema Corte interpretou essa emenda de forma diferente, argumentando que portar armas em casa se trata de um direito individual. Essa decisão foi política, diz Donohue.
“É tudo uma questão de política, de quem está na Suprema Corte e quem financia os políticos que nomeiam as pessoas na Suprema Corte”, diz ele. “Foi uma decisão de 4 a 5. Se George W. Bush tivesse perdido a eleição em 2000, teria acontecido o contrário. E se Hillary Clinton tivesse vencido a eleição em vez de Trump, essa decisão poderia até ter sido anulada.”
Agora, é provável que o porte de armas seja ampliado nos EUA, com a expectativa de que o tribunal anuncie uma decisão nas próximas semanas que afirme o direito de portar armas em qualquer lugar – algo que poderia derrubar as restrições que alguns estados têm ao porte de armas em público e que também pode afetar restrições sobre armas de assalto, leis de armazenamento seguro e períodos de espera.
A maioria dos americanos apoia o aumento do controle de armas – em uma pesquisa de 2015, até 72% dos membros da NRA disseram que apoiavam a verificação universal de antecedentes. Mas será necessária mais pressão pública para superar a influência de grupos como a NRA, diz Donohue. E, mesmo depois de tantos tiroteios trágicos, isso ainda não aconteceu.
“Ainda acredito que, em algum momento, haverá uma reação”, diz ele. “Ainda não chegamos lá. Mas em algum momento, um desses atiradores em massa vai subir em um estádio e talvez matar 100, 200 ou mais. E aí eu acho que os EUA vão chegar ao ponto em que a Austrália chegou há décadas e, finalmente, dizer “basta!”.