Na primeira noite que passou sozinha em casa, depois de a família ter se mudado da Casa Branca, Michelle Obama sentiu que sua vida voltava a ser o que era antes de o marido se tornar o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Teve fome e foi até a cozinha onde ela mesma pôde fazer seu misto-quente, que saboreou no pátio, sem precisar avisar ninguém aonde estava indo. Depois de oito anos no centro do poder, ela estava recobrando o fôlego e disposta a falar.
Assim tomou forma a autobiografia Minha História, recém-lançada no Brasil pela editora Objetiva (com preço sugerido de R$ 59,90).
As mais de 400 páginas trazem as memórias da mulher de trajetória profissional ímpar que se viu como primeira-dama da nação mais poderosa do mundo. Mas também da filha criada pelos pais para ir além da realidade da comunidade onde cresceu. De quem se viu vezes sem fim como “a única mulher, a única afro-americana em todos os tipos de ambientes” e soube se fazer ouvir. Da esposa e mãe que deu conta de carreira, aspirações profissionais, propósitos de vida, maternidade e casamento. E de uma mulher negra conhecida mundo afora, exposta ao escrutínio público.
Michelle percorre a própria vida desde a infância em um bairro predominantemente negro de Chicago, onde cresceu com liberdade e disciplina ao lado do irmão, Craig. Seus pais a criavam para ter autonomia: Marian, uma dedicada dona de casa que voltou a trabalhar quando os filhos estavam mais crescidos para ajudar no sustento da família, e Fraser, funcionário municipal que cuidava das caldeiras de uma estação de tratamento de água e enfrentava os avanços da esclerose múltipla sem jamais se queixar.
Acompanhamos como Michelle sonhou alto desde o primeiro ano de escola até ingressar nas mais tradicionais universidades americanas. Vemos como ela se torna uma advogada de futuro brilhante no direito corporativo e como decide abandonar a estabilidade e o salário polpudo para ter um trabalho mais afim com seus ideais: primeiro como assistente do prefeito para desenvolvimento e planejamento; depois, como diretora-executiva de uma organização sem fins lucrativos que incentivava jovens a trabalhar em questões sociais, seguindo como sub-reitora de relações comunitárias da Universidade de Chicago e, ainda na mesma instituição, como diretora executiva para assuntos comunitários do Centro Médico.
E por fim como peça-chave na campanha presidencial do marido, Barack Obama, e primeira-dama dos EUA, quando se dedicou a causas como nutrição infantil, educação e autoestima como ferramenta de mudança.
Ao longo do livro, Michelle relata o temor de que, à medida que o marido avançava na carreira política, sua própria trajetória e suas realizações fossem perdendo espaço para as demandas de ser a senhora Obama.
“Estava profunda e deliciosamente apaixonada por um homem dono de uma inteligência e de uma ambição tão poderosa que podia acabar engolindo as minhas”, escreve. Mas basta rever sua trajetória para saber que ela deixou sua própria marca. E que há certamente muito mais por vir.
Sem chance ao fracasso
Aluna dedicada e competitiva, Michelle queria seguir os passos do irmão e entrar em Princeton, uma das mais prestigiadas universidades americanas. Mas, a despeito do histórico de estudante exemplar, ouviu da orientadora educacional que deveria desistir: “Não sei bem se você é do tipo de Princeton”.
Desde pequena Michelle havia aprendido a resistir a quem tentasse plantar a ideia de fracasso. Entrou em Princeton, onde encontrou seu espaço, ainda que lhe consumisse energia “ser a única pessoa negra em uma sala de aula”. De lá, ingressou no Direito de Harvard. E dedicou parte da carreira e a posição como primeira-dama a encorajar outros jovens a irem tão longe quanto seus sonhos.
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Eis Barack Obama
Aos 25 anos, ganhando mais do que os pais e vestindo terninhos Armani, Michelle tinha uma carreira promissora em um escritório de direito corporativo. Um dia, lhe pedem que seja mentora de um colega do programa de estagiários de verão, um “incensado e genial estudante de Direito” de nome “bem esquisito”.
Barack Obama chegou atrasado no primeiro dia e a impressionou por parecer “seguro em relação ao caminho que sua vida estava seguindo”. Fazia parte da mentoria providenciar para que ele se sentisse bem-vindo, e Michelle o levou a um happy hour com outros profissionais em ascensão, onde ele surgiu com “um blazer de linho branco que parecia saído direto do figurino de Miami Vice”.
Não demorou, Barack a convidou para sair. Ela recusou, uma, duas, três vezes. Até que eles engataram o romance. Ambos compartilhavam ideais e queriam fazer diferença: Michelle, prática, focada no trabalho, nas causas que defendia e no futuro a dois; Obama, um eterno otimista, que sonhava cada vez mais alto e era capaz de perder o sono pensando na desigualdade de renda.
Marian e Mary
Desde os tempos em que se dedicava aos cuidados de sua família de bonecas, Michelle sonhava em ser mãe. Malia nasceu em 1998. Três anos depois, veio Sasha. Com o marido cada vez mais absorvido pela vida política, Michelle vivia os dilemas de toda mulher tentando dar conta de tudo: queria ser presente como sua mãe, Marian, que se dedicou inteiramente à infância dos filhos, sem perder seu lado Mary Tyler Moore, a profissional ambiciosa e independente da série de TV à que assistia quando criança.
Mas a equação Marian-Mary parecia cada vez mais desafiadora, e ela chegou a cogitar deixar de trabalhar. Então, recebeu uma nova oportunidade de trabalho: ser diretora executiva para assuntos comunitários do Centro Médico da Universidade de Chicago.
No dia da entrevista, chegou com a caçula de três meses no colo, exigiu horário flexível e salário condizente para pagar uma babá e ajuda para cuidar da casa. “Qualquer que fosse o resultado, eu sabia que pelo menos tinha feito algo de bom por mim mesma ao expor minhas necessidades”, escreve.
Michelle conquistou a vaga.
A posse
Das muitas imagens emblemáticas da posse do primeiro presidente negro dos Estados Unidos, muitos devem lembrar da cena de Obama e Michelle dançando, como se estivessem sozinhos no salão. “Meu marido – meu melhor amigo, meu companheiro em tudo – faz com que todos os momentos que passamos juntos pareçam íntimos”, escreve Michelle, que estava deslumbrante com um longo branco de Jason Wu.
A primeira-dama negra
“Como a única primeira-dama afro-americana a pisar na casa branca, eu era de ‘outro tipo’”, afirma Michelle em sua autobiografia, ciente de que estaria mais vulnerável em função de “medos infundados e estereótipos raciais”. Por conta disso, sentia que precisava ser melhor e mais forte do que nunca. Foi apontada como “mulher negra raivosa”, teve de lidar com boatos maldosos como o que questionava se ela era homem ou mulher. Sem contar o congressista que fez piada de sua bunda.
Ao mesmo tempo, sempre teve provas concretas de que era exemplo para muitas outras mulheres e também para meninas que agora sabiam que podiam sonhar alto.
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Na Casa Branca
Aos muitos que perguntam como era morar na Casa Branca, Michelle descreve como viver “em um hotel chique, só que sem outros hóspedes”. São inúmeros aposentos e sempre em grande escala. Apenas uma sala era maior do que o apartamento onde ela havia crescido. Há um enorme staff, que inclui chefs estrelados, floristas e camareiras. Para manter um pouco da rotina da família, a primeira-dama logo deixou claro à equipe de arrumação que as filhas seguiriam arrumando as próprias camas. Mas também autorizou as meninas a jogar bola no corredor.
Capa da Vogue
Pouco depois de Obama ser eleito para o primeiro mandato na Casa Branca, a Vogue convidou Michelle para estampar a capa da revista. Como tudo que dizia respeito à então primeira família dos EUA, a proposta foi discutida com assessores políticos. Poderia ser considerado frivolidade ou elitismo em tempos incertos na economia? Mas um argumento se impôs para ela aceitar, como conta Michelle: “é importante que mulheres negras apareçam em capas de revistas”.
O fator Trump
“Sempre vou me indagar o que terá levado tantas mulheres, especialmente, a escolher para a presidência um misógino em detrimento de uma candidata de qualificação excepcional”, escreve Michelle ao lembrar da vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton em 2016.
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